Discurso na vida e na arte: reflexões


Camila Cristina de Oliveira Alves (Slovo - UNESP/FCLAr)

Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. [...] unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida [...]. Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. (BAKHTIN, 2010)

A perspectiva bakhtiniana toma a linguagem como ação sobre o mundo e sobre a própria linguagem. Desse modo, a concepção de enunciado para o Círculo de Bakhtin engloba a reflexão/refração da realidade, visto que o enunciado é uma compreensão responsiva de um sujeito (MENDONÇA, 2012). Para Bakhtin[1], a arte é imanentemente social. Assim, o discurso artístico ocorre de modo semelhante ao discurso da vida, ou seja, influenciado por elementos extra-verbais que encontram resposta dentro do texto artístico. O pensamento bakhtiniano compreende que nos “campos da comunicação discursiva, inclusive no campo da comunicação cultural (científica e artística) complexamente organizada, a natureza dos limites do enunciado é a mesma” (BAKHTIN, 2010).
Para entender a conceituação de discurso na arte para Bakhtin, bem como as ideias de 'autor', 'exotopia' e 'acabamento estético', que são citados no decorrer de sua obra, é preciso entender que para o filósofo russo as práticas culturais são posições socioavaliativas postas numa dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas. Todo ato cultural se move entre inter-determinações responsivas, isto é, assumindo uma posição valorativa frente a outras posições valorativas.
No ato artístico, a realidade vivida é transportada para um outro plano axiológico. O ato estético opera sobre sistema de valores constituídos no plano da realidade criando novos valores no plano da arte. Aspectos da vida são trazidos para uma nova organização e subordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem contida e acabada. O ato criativo envolve, portanto, um processo de transposição da vida para a arte:

O autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida. (FARACO, 2005, p.39)

A esse olhar extraposto que se refere o pensamento bakhtiniano, nenhuma significação é dada, mas sim criada nos processos dialógicos com o “outro”. A partir de sua abordagem dialógica, Bakhtin formulou o conceito de gênero, instância de criação e acabamento do objeto estético. Nesse sentido, no processo de criação o “eu” é levado a perceber-se na categoria do “outro” e a noção de gênero, portanto, foi pensada como forma de acabamento de uma visão de mundo determinada pelo ponto de vista. O acabamento, resultado de uma visão extraposta, corresponde a um modo de dar corpo às experiências, daí o estilo. “O excedente de visão, que completa a vivência inacabada, é que se encarrega de criar o acabamento” (MACHADO, 2005, p.142).
Essas ideias estão baseadas no conceito bakhtiniano de exotopia, que trata da questão da criação individual. Desde Para uma filosofia do ato responsável, esse conceito atravessa toda a obra bakhtiniana apontando para a criação artística e de conhecimentos (isto é, o estético e o epistemológico) como irredutíveis a um. Há sempre dois olhares, duas vozes no mínimo. Em uma obra de arte qualquer “se ouvem vozes, ouvem-se também, com elas, mundos: cada um com o espaço e o tempo que lhe são próprios”. A criação é sempre ética, “pois do lugar singular do criador derivam-se valores” (AMORIM, 2006, p.105).

REFERÊNCIAS:

ALVES, C. C. O. Diálogos entre rap e repente : heterogeneidade discursiva e representação da subjetividade na canção. 2013. 110f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa), Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013.

AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In.: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.

BAKHTIN, M./VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução de C. A. Faraco; C. Tezza. Circulação restrita. [1926].

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de P. Bezerra. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FARACO, C. A. Autor e autoria. In.: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p.37-60.

MACHADO, I. A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005.

MENDONÇA, M. C. Desafios metodológicos para os estudos bakhtinianos do discurso. In.: GEGe – UFSCaR. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. p.107-117.






[1] In.: Discurso na vida discurso na arte: sobre poética sociológica. Trad. C. A. Faraco; C. Tezza. Circulação restrita. [1926].

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